Périot e as imagens que o assombram

 

Artesão dos materiais de arquivo, um dos mais singulares cineastas contemporâneos é homenageado no IndieLisboa. Retrospectiva integral a partir de amanhã.

Para a maioria dos espectadores mais atentos ao cinema documental (em Portugal ou noutros países), um dos grandes filmes de 2015 marcou o primeiro contacto com um dos mais singulares cineastas franceses do século XXI, Jean-Gabriel Périot (n. 1974). Um dos choques do IndieLisboa do ano passado, Une jeunesse allemande era uma extraordinária dissecação do percurso da geração alemã “revoltada” dos anos 1960 em direção à radicalização do grupo Baader-Meinhof, inteiramente construída a partir de materiais de arquivo.

Na verdade, contudo, Une jeunesse allemande é muito mais um ponto de chegada numa carreira activa desde 2000, escavando e desenterrando o que se esconde por trás das imagens para revelar o que elas deixam por dizer. É esse percurso singular de artesão que o Indie tem acompanhado irregularmente desde 2007 e que traça este ano ao longo de quatro noites (entre hoje e terça-feira) numa retrospectiva integral, dentro da secção paralela Silvestre.

Aqui, sim, Une jeunesse allemande será o “ponto de chegada” — o último dos 28 filmes de Périot a ser projectado, “corolário” de uma obra inteiramente passada na curta-metragem e ancorada na não-ficção. Um cinema abertamente político no modo como questiona constantemente as representações convencionadas de um momento histórico.

Por Skype do seu estúdio às portas de Paris, Jean-Gabriel Périot confessa (surpresa!) que esse questionamento empenhado é algo que procura “suprir” as “falhas” da sua própria aprendizagem cívica. “Não tenho uma formação política,” explica. “Não fui um adolescente militante, nem venho de uma família politicamente activa. Daí que na minha cabeça houvesse imensos lugares-comuns sobre os Black Panthers, Mao Tsetung, as lutas laborais do século XX. Muitas vezes, os meus filmes começam a partir de algo que leio sobre um tema do qual não sei nada, e que me leva a questionar os lugares-comuns. Dou por mim a aprender: porque é que não sabia isto, porque é que tinha outra visão dos acontecimentos? E começo a investigar...”

Os resultados dessas investigações podem ser vistos, por exemplo, em 21.04.02, vertiginosa montagem de imagens da sociedade francesa, culminando no dia da primeira volta das presidenciais de 2002, onde Jean-Marie Lepen recebeu votos suficientes para passar à. segunda volta. Eût-elle été criminelle... pega em imagens da libertação de França da ocupação nazi em 1944 para revelar, nas suas margens, as mulheres que foram castigadas e humilhadas publicamente como colaboradoras. Nijuman No Borei (200 000 Fantômes) sequencia fotografias tiradas entre1914 e 2006, de vários ângulos, doCentro de Exposições Comerciaisde Hiroxima, cuja cúpula sobreviveu àexplosão atómica de 1945 ese tornou num dos memoriais dacidade. Aqui, o processo de incrustaçãoe sobreposição das imagensem camadas torna-se numa espéciede ilustração da passagem dotempo assombrada pela históriahumana.

“Assombração” é uma boa palavra para definir o interesse de Périot por estes temas centrais da história do século XX. “Há imagens que nos assombram e que assombram a história, que me fazem parar e que me obrigam a perguntar porque é que uma imagem se torna problemática. Antes de tudo, é um trabalho pessoal: porque é que paro neste acontecimento em particular? É o trabalho do filme que me permite compreender essa pergunta. E permite também interrogar a história no que ela tem de mais violento e problemático, interrogar a história e a memória, porque é que há imagens que marcam e outras não”, explica o realizador.

Périot confessa, com um sorriso, ter “poucos centros de interesse”. “Ou antes, tenho perguntas que considero mais importantes do que outras, e sobre as quais continuo a trabalhar.” Exemplo: os movimentos de contestação à autoridade, expostos num contínuo que passa por L’art délicat de la matraque, colagem de imagens de agressões policiais, ou The Devil, sobre os Black Panthers. “A história da resistência, das resistências, não existe verdadeiramente, porque a história é sempre escrita pelos vencedores”, explica o cineasta. “Há muito poucas contra-histórias, e isso é muitas vezes esquecido. Há sempre histórias do outro lado que temos permanentemente necessidade de mostrar. E a vontade que está no interior destes filmes é a de impor perguntas que são para mim vitais, partilhá-las com o espectador. Esse é um dos pap.is-chave do cinema político: tentar formular uma pergunta, antes do mais para mim mesmo, e depois tentar transmitir isso a quem vê. Ao cinema que se diz político cabe enunciar questões sem se preocupar com a resposta, abrir espaços de reflexão.”

 

Trabalho de pesquisa

O próprio processo de criação é, para Périot, um desses espaços. “Fazer um filme força-me a trabalhar a um nível quase académico, quanto mais não seja porque utilizar imagens de arquivo implica saber de onde é que vêm, o que é que contam. Faço um verdadeiro trabalho de pesquisa, mesmo que isso depois não se veja diretamente nos filmes.” Essa pesquisa vai-se “depositando” ao longo de processos de produção muito pacientes: um ano inteiro de trabalho para curtas de dez minutos como Nijuman No Borei ou Dies Irae.

A aposta de Périot na curta-metragem começou por uma questão muito prática. “As imagens de arquivo permitem trabalhar coisas muito concretas e fazer filmes rapidamente, no meu cantinho, sem dinheiro.” Mas provaram também prestar-se aos temas que o realizador escolhe e é sua abordagem paredes-meias com o experimentalismo formal. “Há um elemento muito forte de independência, com menos questões de produção e financiamento, o que me permite ser um pouco mais radical. Os meus filmes são muito políticos, por isso têm de ser muito imediatos, e isso tem mais impacto num formato curto do que num formato longo.”

 

Panfletos “esquecidos”

Isto tem o efeito secundário, quase contraintuitivo, de permitir uma divulgação muito mais alargada e em contextos muito diferentes. “Como fazemos filmes para serem vistos, sem nos darmos conta, as curtas permitem atingir um público muito mais vasto,” explica o cineasta. Une jeunesse allemande, longa financiada e difundida através do circuito tradicional (festivais, estreia em sala, exibição televisiva, lançamento em DVD), “não est. visível online”. “Só o vê quem o quer ver.” Pelo contrário, as curtas circulam de modo ágil e contínuo. Muitas estão disponíveis gratuitamente no próprio site do cineasta (www.jgperiot.net) ou em agregadores como o Vimeo, mas todas circulam regularmente por todo o mundo.

“Alguns dos meus filmes tiveram centenas de projeções entre festivais, sessões especiais ou sessões escolares”, conta Périot. Como quem deixa panfletos “esquecidos” na mesa de café, ganhando uma dimensão muito mais subversiva ao serem mostrados é esquina de um link online ou no meio de programas variados. “Um filme como Eût-elle été criminelle..., programado entre dois filmes mais leves numa sessão, cria uma surpresa, um contraste. São pequenos objetos políticos que aparecem de repente em locais completamente inesperados.”

Périot divide, no entanto, a sua própria produção em “zonas”. De um lado estão os filmes “de montagem”, construídos é base de imagens de arquivo e material pré-existente. Do outro os títulos “filmados” de raiz, quer sejam ficções (três em carteira e uma quarta a caminho), quer sejam não-ficções no limite do gesto performativo (como o díptico realizado no âmbito de um workshop artístico com prisioneiros da penitenciária de Orléans: Nos jours, absolument, doivent être illuminés e Le jour a vaincu la nuit). “São dois tipos de ritmo, duas maneiras de ver”, lança Périot para explicar essa separação. “Quando filmo, gosto muito de deixar o plano correr, de ver os rostos; quando monto, o ritmo é mais sincopado. Gosto que o trabalho de mise en scène seja visível, indica o olhar que se tem sobre a realidade. Nos arquivos vemos muito facilmente a montagem; quando filmo, gosto que se veja o trabalho de colocação da câmara, que este plano pareça um pouco longo demais ou que a câmara pareça estar demasiado imóvel. Isso revela que há alguém por trás da câmara, a fabricar o filme.”

Há ainda uma terceira dimensão no seu cinema — talvez a mais surpreendente, feita de experiências paredes-meias com o nonsense. São pequenas vinhetas de um, dois, três minutos que abordam, de modo muito subversivo e com um humor muito ácido, típicos LGBT, filmadas maioritariamente entre 2000 e 2006. “Acredito no humor como uma ferramenta de subversão muito boa”, explica Périot. “E é também outra maneira de levantar questões sérias de maneira mais ligeira. Nijuman no Borei ou Dies Irae são filmes muito sérios, densos, sombrios. Por isso, durante alguns anos, fazia pausas de alguns dias para criar filmes mais leves, voluntariamente parvos. Fazia-me bem, limpava-me a cabeça.”

O mais recente filme dessa série — e também o mais atìpico — é #67, realizado em 2012, que faz equivaler a cultura do tomate é política contemporânea. Mas não deveria ser uma surpresa que o cinema Jean-Gabriel Périot tenha um lado mais divertido. “Sou conhecido por ser muito sério, um pouco sombrio”, sorri o realizador do outro lado da linha. E de repente estes filmes revelam que as coisas não são bem assim: “Que é possível fazer filmes sobre Hiroxima e fazer outro completamente palerma sobre tipos a urinar. A vida é uma coisa muito mais rica, muito mais complexa.”

 

Jorge Mourinha
Publico
22 abril 2016